Klotzel filma 'Brás Cubas' pós-tropicalista
(especial para a Folha)
"Um 'Brás Cubas' pós-tropicalista." Assim o cineasta André Klotzel, 43, define seu próximo e ambicioso projeto, a transformação em longa-metragem do romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
O diretor de "A Marvada Carne" e "Capitalismo Selvagem" já está com o roteiro pronto para ser filmado, com o título provisório de "Memórias Póstumas" (leia trecho nesta página). O filme foi orçado em R$ 4 milhões e deverá ser rodado no Rio e em Portugal. "É mais barato filmar lá que no Brasil", afirma o cineasta.
O elenco ainda não está definido, porque, segundo Klotzel, depende da escolha do ator que vai encarnar o personagem principal. "Quero experimentar com vários atores antes de escolher, pois o Brás vai determinar o tom de todo o filme."
Folha - De onde veio a idéia de adaptar "Memórias Póstumas"?
André Klotzel - Veio da releitura do romance. Eu tinha lido Machado de Assis na adolescência. Quando reli "Brás Cubas", bateu uma empatia imediata. Comecei a achar o livro pré-modernista. Até hoje ele nunca se encaixou em nenhuma classificação, mas comecei a encará-lo como pré-antropofágico. Ele pega Laurence Stern, Xavier de Maistre, citados na própria introdução da obra, e reutiliza isso de outra maneira, quase antropofágica. Por outro lado, "Brás Cubas" e "Macunaíma" têm uma coisa em comum: os dois livros são histórias de vida de heróis sem nenhum caráter. Levando em conta essas afinidades, estou querendo fazer um filme pós-tropicalista.
Folha - Como vai ser narrado o filme?
Klotzel - O Brás Cubas vai aparecer como fantasma contando sua história. Quando estava escrevendo o roteiro, percebi que, quando o Machado publicou o livro pela primeira vez, em 1880, o Brás Cubas já tinha morrido havia 11 anos. Então, o romance já é um romance de época. Eu transpus isso mais radicalmente. O fantasma ainda está presente aqui, no final do século 20, contando a história dele, que se passou de 1805 a 1869. O fantasma está vagando por aí e resolveu contar sua história no cinema, tal como a havia contado em livro depois de morto.
Folha - "Memórias Póstumas" será um filme bem mais caro que os seus anteriores.
Klotzel - Sim, porque é um filme de época, que tem fantasias no meio, como o delírio em que um hipopótamo fala. "Memórias Póstumas" acompanha a vida de Brás Cubas do nascimento até a morte, passando por várias locações, exigindo construção de cenários. É uma coisa trabalhosa, demorada em termos de filmagem.
Folha - Sua ideia é fazer uma reconstituição de época realista ou estilizada?
Klotzel - Um pouco estilizada, mas objetiva, límpida, transparente. Machado de Assis não é um autor muito descritivo. A descrição dele é mais psicológica que física. Acho que o filme vai obedecer essa abordagem do Machado. Você tem um pano de fundo inevitável, que é a própria época, mas não é um filme que valoriza o seu pano de fundo. Não estou preocupado em mostrar a suntuosidade de algumas coisas, o foco não é esse. O filme está olhando para o personagem.
Folha - A narração vai ser fragmentada e metalinguística como a do livro?
Klotzel - A toda hora, o fantasma do Brás vai falar diretamente com o público, como no livro. Vai comentar, o tempo todo, tudo o que está acontecendo. A narração, nesse sentido, é bem fiel ao livro. A fragmentação, na realidade, é a fragmentação do próprio personagem. Ele é um sujeito volúvel, que a toda hora está mudando de opinião, abordando as coisas de maneira diferente, se contradizendo. Essa maneira de narrar, aparentemente descontínua, é bastante moderna. É um discurso fragmentário, porém uno.
Folha - Como você diferenciaria a sua versão da que foi filmada por Julio Bressane ("Brás Cubas", 1985)?
Klotzel - A versão do Bressane é bastante interessante, mas acho que ele usou o livro como um suporte para outra coisa. O narrador é muito mais Bressane do que qualquer outra coisa. Na minha versão, vou procurar fazer com que o narrador seja o Brás Cubas mesmo. A leitura do Bressane é muito pessoal. Vou tentar uma adaptação literária de outro tipo, que respeita os parâmetros do romance, em que este não seja um mero suporte.
Folha - E o "Quincas Borba", do Roberto Santos?
Klotzel - Acho o romance "Quincas Borba" mais difícil de adaptar para o cinema que o "Brás Cubas", porque depende mais do diálogo, ao passo que "Brás Cubas" tem um pouco mais de ação, tem delírios, etc. O Roberto Santos buscou uma solução corajosa, que foi manter no filme essa tendência à verbalização, e ainda por cima fez uma transposição de época. Foi isso que dificultou a comunicação do filme com o espectador.
Folha - O que "Memórias Póstumas" tem a dizer hoje?
Klotzel - Muita coisa. Há uma contradição entre o discurso filosófico moderno apresentado por Brás Cubas e a sociedade escravocrata de que ele participa como classe privilegiada. Um discurso progressista e uma prática social atrasada. "Uma extrema elegância com uma descompostura elementar", como diz o crítico literário Roberto Schwartz. O que há de mais atual do que isso? É o politicamente correto em contraste com o comportamento antiético. São elementos formadores da sociedade brasileira, que estão no "Brás Cubas" e estão aí hoje em dia.
Folha - Como você está vendo os novos filmes que têm sido feitos no país?
Klotzel - Eles apresentam uma diversidade muito saudável, temática e estética. Eu gosto principalmente de "Os Matadores". Talvez seja o mais brasileiro dos filmes que foram feitos, sem precisar enfatizar isso. Acho que é talvez a forma mais acabada de cinema, entre os filmes de estreantes. Mas há outros que são instigantes, que trazem ao público propostas interessantes, como "Baile Perfumado" e "Um Céu de Estrelas". Para mim, o cinema ideal seria como é a música popular brasileira, um "CPB", "Cinema Popular Brasileiro", uma coisa integrada, em que você não tem que dissociar o lado comercial do lado criativo e cultural. Não é preciso ser burro para ser popular, nem é preciso ser hermético para ser inteligente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário